domingo, 28 de fevereiro de 2016

Detlef Schrempf

Nada como um domingo em São Paulo. Curtir a noite de sábado como se não houvesse possibilidade de haver um outro sábado na vida e dormir, pra depois acordar tarde, abrir a janela e perceber que a cidade partilha da mesma ressaca, com aquela cara cinza chuvosa. Além de muito me fazer refletir sobre diversas coisas, tal quadro faz parte do repertório paulistano e não pode ser tratado com um tom desesperador. Deixa o cinza tingir o azul do céu de outrora. Deixa a chuva molhar as calçadas e ruas e telhados das casas. Tem muito de preguiça num dia como esse. É desafiador pensar em dar saltos grandiosos quando tudo o que se quer é acender um cigarro e observar a melancolia da cidade a passos lentos.

Meu nome é Vicente Kresiak Canato e eu não sei exatamente onde quero chegar com isso aqui. Talvez do outro lado da rua. Talvez do outro lado da cidade. Quem sabe, do outro lado de uma autoestrada qualquer. Bem provável que na porta da sua casa. Aquela casa grande, de muros baixos e pintados de terracota. Com aquele cachorro imenso e estabanado esperando no portão. Na terra do sol fustigante, quarenta graus de amor e ódio. Talvez não. Com certeza não. A casa da qual me refiro agora é outra. E pode ser uma, dentre tantas. Em bairros nobres ou não. Longe ou perto da minha atual localização. Tudo em aberto nesse meu coração.

Meu lugar é impreciso. Dichavo um tanto de tabaco, enrolo na palha e amarro com um micro pedaço de linha preta. A arte de fazer o próprio cigarro me aproxima de maneira muito eficiente e peculiar das condições mais rústicas do ser humano. Agora sou eu, meu palheiro e os faróis verdes, amarelos e vermelhos da sinaleira da esquina, que dita o ritmo daqueles que não se arriscam à sorte das pequenas e incontáveis gotas que escorregam lá de cima. Sinto algumas delas molharem meu cabelo e meu rosto. Não desanimo, não há sequer um bom motivo para desanimar. A cidade é grande, mas é só uma cidade. Um punhado de gente, de carros, de prédios e de avisos para não fumar em locais fechados.

Cada centavo conta. Procuro pelas moedas e notas amassadas que sobraram no fundo dos bolsos, mas agora é tarde. Já desci do trem, já passei pela catraca, não há como voltar atrás. Tarde, tarde demais. Eu bem sabia que deveria ter verificado cada centavo antes de atravessar essa linha inteira. Antes de descer do trem. Antes de passar a catraca. Me faltam noventa centavos para completar o bilhete. Noventa centavos milionários, para retornar à boa e velha casa de onde há pouco saí. Melhor não esquentar. Não sei se cheguei onde queria chegar, nem se saberei quando e como voltar. Tudo bem. Meu aparelho de som portátil indica uma trilha nova e interessante de um disco qualquer do Band Of Horses, um grupo simpático de Seattle. Vou na deles. "The town is gonna talk, but these people do not".

Meu nome é Vicente Kresiak Canato, e tenho muito pouco para contar. Tanta gente ao meu redor, tantos outros possíveis Vicentes dividindo o mesmo metro quadrado. Tenho vontade de perguntar o que se passa na vida de cada um deles. Quais serão seus dilemas? Seus sonhos? Seus monstros? Quais serão suas alegrias? Seus bons motivos para sentir orgulho ou pena de si mesmos? Sinto um aperto no peito por não fazer o que tenho vontade. Às vezes me privo de dar uma rasteira nessas impossibilidades conceituais que me afastam de fazer o que realmente quero. Por quê? Não sei. Ontem ouvi, da mesma boca que me beijava, algo sobre tendências autoboicotáveis.

Como se o grande prazer da minha vida fosse dar rasteira em mim mesmo. Daí eu penso: domingo de chuva, sem um puto no bolso, do outro lado da linha do metrô que me levaria de volta para casa. Sabe a qual conclusão eu chego? Então...

O grande erro é acreditar que somos plenamente capazes de controlar nossas ambiguidades, restringindo assim nossas possibilidade de erros ou acertos. Viver é caminhar claro e escuro, cair, levantar e seguir adiante, independente da largura de cada passo que é dado. E por uma questão de saúde, é melhor eu apressar os meus. A caminhada será longa.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Ainda Sou O Mesmo

A pergunta que eu faço todo dia para mim mesmo é a seguinte: "quem foi que disse que eu tenho que ter certeza de tudo, do rumo ao prumo, quem foi que disse que eu preciso ter certeza alguma?". Quando eu era bem moleque, e quando digo bem, e quando digo moleque, isso lá pelos dez anos de idade, a única coisa que fazia sentido na minha vida era o fato de que eu realmente não sabia o que significava a palavra "sentido" e muito menos do que se tratava a palavra "fato". Eu era apenas uma criança de dez anos e tudo o que queria era ver o tempo passar enquanto esperava minha mãe me buscar na escola e o tempo parar enquanto brincava com meus amigos.

Não pensava em nada que não fosse algo do tipo. Não havia complexidade, não havia ainda a ideia de que alguém poderia vir a me fitar como um pedaço de carne pronto para o abate, como um ser à deriva, ou como uma pessoa qualquer que faz parte desse mundo tão pitoresco. Éramos apenas crianças e se pudéssemos somar nossas idades, não passaríamos dos quarenta. Caso contrário, saberíamos desde muito cedo todas essas coisas sobre a dureza de ser gente grande.

Mas não, o negócio era chutar possas, sujar as roupas e andar pelas ruas como se não houvesse amanhã. E sinceramente, certamente não havia. O amanhã, clichê de cada novo dia, é coisa pra se pensar a partir da adolescência. E como qualquer punhado de seres ínfimos, guardávamos nossas possíveis preocupações e angústias em pequenas caixinhas de segredos, bem lá no fundo daquela enorme gaveta onde circulam nossos pensamentos. Não havia certeza alguma. Não havia necessidade de certeza alguma. Havia bolo. E se houvesse bolo, havia tudo.

Posso parecer um tanto ingênuo. Um tanto bobo. E isso me incomoda muito menos do que outras certas coisas que eu poderia pensar de mim mesmo. Ou que penso. Às vezes sinto que o tempo se estende por ciclos diversos e que a cada ciclo, uma nova pessoa, dentre as tantas que sou, toma as rédeas e dita o ritmo, até que da noite para o dia, tudo muda e nada do que foi será - parafraseando Lulu - de novo, do jeito que já foi um dia. Não há qualquer sinal de bipolaridade, tripolaridade ou tetrapolaridade. Chamam isso de múltiplas personalidades. Vejo mais como um dia após o outro. Como o jeito natural de ser e se adaptar a tudo e a todos.

Não dá para passar a vida inteira fazendo tudo da mesmíssima forma, diariamente, eternamente. Há dias que a rotina escapa das mãos e prevalece aquela sensação de que o mundo é mesmo muito grande. Dias em que a rotina não escapa e então, nada acontece. Posso parecer um pouco perdido quando falo sobre certas coisas, mas é bom que seja assim, me sinto bem dizendo aquilo que me vêm à mente. Aquela ideia que supera todas as outras. Aquele lapso vencedor, que passou por cima de todos os outros e pronto. Aquela fagulha que brilhou mais intensa. Posso parecer certo de tudo. E não saber nada de porcaria nenhuma.

Certo somente de que tudo e nada separam-se por uma linha muito tênue. Ainda sou o mesmo. Por mais que o corte de cabelo seja outro, por mais que o tom da pele e da voz também tenham mudado. Por mais que as ideias tenham flutuado por diversos e distantes mares, por mais que o brilho dos olhos tenha deixado rastros por inúmeros flertes. Por mais que o corpo apresente marcas que evidenciam feridas que talvez jamais venham a cicatrizar. O mesmo ser aventureiro e questionador incansável de tudo sobre qualquer coisa que seja. Cansado da vida e distante demais da morte. Ainda sou o mesmo. Caçando sorrisos nas ruas, brincando com a sorte. O mesmo, exatamente o mesmo. Não há dúvidas, cheiro de criança, aroma de menino, perfume infalível de homem. E como o tempo voa...