terça-feira, 17 de maio de 2016

Como Falar Como Diversas Vezes

Como um ponto junto a tantos outros pontos de um céu estrelado, intermitentemente piscando, flertando com o perigo de um buraco negro qualquer. Como um sussurro poético ao pé do ouvido. Como calda de caramelo e suspiros queimados. Como ranger os dentes. Como afeições descabidas. Tal como medo de crônicas de duplo-bloco. Como esse apanhado de frases imperfeitas. Ou como no silêncio dos amantes ao fim de uma noite de amor literário, como nos livros de Allende, como nos versos de Cortázar, como nos goles de Fernet. Como "Things Behind The Sun", como nos filmes de Jarmusch. Como a carne que se faz aproximar, como o calor que sua, como a pele que arrepia, como as mãos que se esparramam, como os lábios que se alinham, como as línguas que se contorcem e como os vinte e nove músculos que anatomicamente se adaptam ao evento que sucede estes dois pontos: o beijo.

quarta-feira, 9 de março de 2016

O Perfume das Cores

Ou (O Envelope).

O suor escorre pelo corpo, tenso e concentrado. Há pelo menos duas horas ele procura finalizar, de maneira épica, seu último escrito. Uma demonstração de carinho em forma de palavras, frases e parágrafos. Nada muito incomum à rotina de um escritor. O cinzeiro abarrotado de bitucas é cúmplice de tamanho emprego energético. Dá-se pouca importância para o ato de escrever. Para muitos, pode parecer algo tão simples como lavar uma pilha de louças. Não, não é.

O suor escorre pelo corpo, tenso e concentrado. Dentro de alguns instantes ela entrará em cena. Depois de anos e anos de dedicação, seu momento finalmente chegou. Protagonista de uma peça prestes a entrar em cartaz, ela ensaia pela centésima vez seus movimentos, repassa fala por fala em sua cabeça. Geniosa, procura guardar cada deixa e cada marcação feita com fita crepe no tablado. Parece pouco complicado, decorar falas e sair por aí gesticulando. Não é.

Mesmo convivendo com elogios diversos e contundentes sobre seu trabalho, o garoto em questão não faz questão nenhuma de holofotes. Pensa que isso é coisa para aqueles que realmente sabem conduzir a língua e tirar uma porção de letras para flutuar, na brisa leve de um conto ou de um poema. Seu negócio mesmo é lidar com aleatoriedades, observações corriqueiras do mundo que o cerca. Simplicidade, verdade e publicações sempre ocasionais. 

Mesmo convivendo com diversas personas, umas assim, outras assado, a garota em questão não faz questão de levar nenhuma delas para casa. Ela sabe diferenciar a profissão da realidade e não se faz passar por alguém que realmente não é. Sua vocação não passa por mera encenação. Seu coração, que mal cabe dentro do peito, a desafia para uma atuação irretocável não somente nos palcos ou defronte às câmeras. Enquanto os outros somente ensaiam, ela vive.

Ele aqui, perambulando pela cidade das ruas mal iluminadas. Ela lá, em qualquer lugar da vasta metrópole. Separados por infindáveis quilômetros, vivendo em paralelo. Felizes à sua maneira, confabulam sonhos, amor e intenções que poderiam deixar o leitor de queixo caído. Inalcançáveis? Inseparáveis! Suas palavras engolem a madrugada, devoram a mesmice do dia-a-dia e perseveram, desde a simples postagem, ao carimbo do carteiro. Como Anton e Olga, ou como tantos outros por aí...

- Assine aqui, por favor.

-Onde?

- Aqui, abaixo do seu nome.

- Hum, ok! Obrigado.

- Obrigado! Tenha um bom dia.

- Terei meu querido! Terei!

terça-feira, 8 de março de 2016

A Melhor das Hipóteses

Como interpretar o vazio, quando a voz que vocifera, se faz tão pouco compreensível? São apenas ruídos, mas a mente, em desalinho, voa para muito longe de onde estava há poucos instantes. Os batimentos brincam de acelerar o ritmo, compasso carnavalesco dentro do peito e aquela sensação estranha de sempre. É inevitável procurar significados e soluções de curto prazo para disfarçar o estrondo. Dois tragos de uma legítima paratiense para o garoto, por favor. Não o suficiente para fazê-lo cambalear pelas pedras do centro, que fique claro. Somente dois tragos, para fazê-lo acalmar o coração, corar as bochechas e na melhor das hipóteses, encontrar no meio desta multidão de estranhos, um rosto conhecido. Ou não.

Assim, como os melhores contos estão em livros ainda não lidos, seu projeto de musa pode estar justamente ao seu redor. Como aquela à esquerda, sorrindo com as amigas, correndo contra o tempo, para quem sabe, não ter de dormir sozinha pela vigésima-sexta vez no mês. Ou aquela, de vestidinho verde mostrando os joelhos, com o cinto acima da altura da cintura, tentando disfarçar as largas ancas. Há um quê de enigmático em cada uma delas. E um tanto de surpreendente, se houver um mínimo de paciência para fazer uma leitura aprofundada. Mas a noite é uma criança, uma criança morrendo de sono, querendo ir logo se aconchegar num cantinho serenado, e priva a maioria de seus atores de tal capacidade especulativa. Ou não.

Se houvesse mais espaço, certamente haveria mais gente. Mas o local não fora planejado para o devido fim. Um corredor abafado, pouca luz e uma distância desafiadora de qualquer lugar até o balcão do bar. Trilha sonora que remete aos tambores de Timbuktu, como numa daquelas festas de evocação e magia. Mais dois tragos para o garoto. Somente mais dois tragos, para fazê-lo não pensar em se preocupar com seus próximos passos, mesmo que tais passos sejam dados entre solavancos e tropeços. Cuidado para não comprimir o pé dela. Tarde demais. O estrago já foi feito. Seu pé, o pé dela e o chão. Fisicamente falando, não há como calcular, devido ao tom de embriaguez, a força resultante de tamanho descuido. Ou não.

Vestido azul comprido, sandália vermelha e uma coroa de flores rodeando seus cabelos, escuros como a véspera da manhã. Quem diria. Sorrindo um sorriso capaz de paralisar até pilantra em rota de fuga, fugindo da mulher ou da polícia. E eu sei, ele poderia ir preso por um sorriso desses. Meu garoto, como é fácil perceber suas intenções. Chega de paratiense por hoje. É preciso ter calma, é preciso ter calma. Qualquer atitude impulsiva poderá fazê-la esconder os dentes. Mas ela não os esconde. Metade dos homens olham atentamente para a cena de cinema que se desenrola em frente à porta do banheiro. Ela é areia demais para esse caminhãozinho. Ela é um avião de grande porte, ele, uma pistazinha de pouso clandestina. Ou não.

Não tenha medo. O máximo que pode lhe acontecer é voltar ao seu estado anterior. Às mazelas de sua alma solitária. Levando em conta o tom proposital do tropeço, nada mais justo que pedir desculpas e oferecer uma cerveja ou um cigarro. Pelo menos sorria de volta, por Deus! Faça qualquer coisa, só não a perca de vista! Com seus olhos penetrantes, ela parece não estar muito disposta a recusar qualquer investida e enfim, partem para uma dança. A bem da verdade, um abraço em movimento, quase um badalo. É o melhor que ele pode fazer, acompanhar seus movimentos, olhar ao redor, copiar, colar e tentar executar. Ela parece não ligar para tamanha falta de perícia. A sorte está a seu favor. Mantenha o sorriso e dance garoto. Apenas isso. Dancem.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Scarlett Johansson

Ela abre a porta do quarto e entra devagar, para não fazer barulho. Fecha a porta e caminha em silêncio, ao redor da cama, tateando o armário de canto, a parede perpendicular, a janela semiaberta. A noite escura não permite observar a cena com muita nitidez, somente seu vulto e seu percurso, realizado com perfeição. Ela finalmente chega ao canto da cama, acende a luz da pequena luminária e se deita. Ao seu lado, um corpo estático. Ele dorme um sono profundo. Cansou-se, esbaforiu-se, gozou e apagou. Ela olha fixamente para o teto. Pega o celular, começa a escrever, desiste, o coloca em cima do criado mudo e, no que se inclina para apagar a luz, escuta um grunhido. Ele desperta. Completamente sonolento, mas enfim, desperto.

ELA
Foi mal, não queria te acordar.

ELE
De boa, quanto tempo eu dormi?

ELA
Uns quarenta minutos, uma hora.

ELE
Tá sem sono?

ELA
Tentei dormir um pouco, mas não rolou. Fiquei pensando naquilo que você me falou, sobre a Scarlett Johansson.

ELE
Quê que tem?

ELA
Não sei, acho que você me trocaria por ela sem pensar.

ELE
Provavelmente sim.

Ela começa a rir. Ele começa a rir. Então começam a se beijar. Ela monta sobre ele, segura seus braços e, delicadamente, mergulha sua língua em seu pescoço. Ele a ajuda a retirar a camisola, ou qualquer roupa de dormir feminina, ao qual o nome simplesmente desconhece. Ele gira seu corpo por cima do corpo dela e a agarra firmemente. Lá fora a chuva cai, torrencialmente. A luz da luminária pisca diversas vezes. Ambos não dão a menor atenção. Raios e trovões. Nada demais, perto do calor que se insinua. Ele desliza seu corpo até a altura da cintura dela e então começa a chupá-la, vigorosamente. Ela se contorce toda e procura se segurar na cama. Algum tempo depois, num salto quase circense, ele se levanta e a puxa, colocando-a de costas, ou melhor, de quatro. Penetração forte e constante, intercalada por alguns espaços de respiração contida e sexo lento.

ELA
Mais forte, mete mais forte!

Ele acelera. Ela gosta. Ambos estão prestes a gozar novamente. Ele acelera ainda mais. Ela emite ruídos. Um misto de gemidos e bufadas, enquanto morde o travesseiro. Ele passa a respirar de maneira ofegante. Ela percebe o andar da carruagem. Logo os dois passam a respirar de maneira intensa. Ela goza. Ele goza. Esgotados, deitam um do lado do outro. A chuva continua, agora, sem muito estardalhaço. É possível ouvir cada gota quicando no telhado. Ela acende um cigarro.

ELA
Scarlett Johansson. De agora em diante, eu me chamo Scarlett Johansson.

ELE
É pra te chamar assim?

ELA
Ué, você não gosta? Ela tem aquela carinha de puta...

ELE
Foi só um filme! Tá com ciúmes?

ELA
Nem um pouco, ciúmes eu tenho é da vizinha. Tu acha mesmo que eu não sei que você come a boceta dela quando eu passo uns dias sem vir aqui?

Ela apaga o cigarro e apaga a luz. Ele senta na beirada cama. É impossível prever seus próximos passos. Por enquanto, apenas observa a noite pela janela do quarto. Se fosse possível ler seus pensamentos, arriscaria um palpite! Não, nada de vizinha. Muito menos dessa, que agora repousa do lado direito da cama. Scarlett, Scarlett...

quarta-feira, 2 de março de 2016

Monólogo Contundente

Hoje eu descobri que sou bom. Sou bom, inclusive, para descobrir coisas e me situar no calendário. Hoje, somente hoje, fui me dar conta disso. Constatei o básico do ser humano em mim mesmo. Eu sou bom. E sou muito bom em diversos aspectos importantes para saber se manter e sobreviver a esse mundo que tanto me constrange. Parei, pensei, retomei o fôlego e cheguei à conclusão de que não preciso de absolutamente nada. Tenho tudo. Se simplicidade valesse grana, eu estaria hoje, mais rico do que nunca. Pois hoje eu descobri que sou bom. Descobri que sou simplesmente demais. Resolvi acordar para a vida e percebi tamanha coisa incrível dentro de mim mesmo.

Daí então você, sentado nesse sofá confortabilíssimo, me perguntará: mas quê coisa é essa meu amigo? Você é bom fazendo o quê?

E eu responderei assim: sou bom fazendo simplesmente aquilo que eu necessito fazer, nada demais, errou se pensou que eu fosse dizer que sou bom de cama, bom pagador, bom amigo, bom filho, bom marido, bom pastor, bom sucesso, bom dia, bombom, bon jour, bom vivant (afrancesando o diálogo), bom pescador, bom samaritano, bom retiro, bombay bicicle club, bombástico, bomba relógio, bomba atômica, bomba nuclear, bomba de fumaça, de chocolate ou de embalar à vácuo. Nada disso meu amigo. Você pensou e errou, completamente.

Daí então você, sentada nessa cadeira de escritório giratória, me perguntará: mas que coisa toda é essa, meu amor? Bom de que jeito?

E eu responderei assim: sou bom demais da conta. Sou bom para mais de metro! Tudo certo, tudo certo. Vou contar para você que sou fodamente bom, bom além da conta, par alugar os seus ouvidos por mais de cinco minutos e não dizer absolutamente nada. Pois é assim que eu me sinto em relação a esse texto agora. Pois é assim que eu me sinto em relação à minha vida agora. Pois é assim que eu me sinto em relação ao meu posicionamento político agora. Pois é assim que eu me sinto...

Bom demais para escrever palavras ao acaso da mente, ao acaso das teclas, que persistentemente me trouxeram até aqui. E agora, para onde ir? Bom... (melhor nem pensar).

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Detlef Schrempf

Nada como um domingo em São Paulo. Curtir a noite de sábado como se não houvesse possibilidade de haver um outro sábado na vida e dormir, pra depois acordar tarde, abrir a janela e perceber que a cidade partilha da mesma ressaca, com aquela cara cinza chuvosa. Além de muito me fazer refletir sobre diversas coisas, tal quadro faz parte do repertório paulistano e não pode ser tratado com um tom desesperador. Deixa o cinza tingir o azul do céu de outrora. Deixa a chuva molhar as calçadas e ruas e telhados das casas. Tem muito de preguiça num dia como esse. É desafiador pensar em dar saltos grandiosos quando tudo o que se quer é acender um cigarro e observar a melancolia da cidade a passos lentos.

Meu nome é Vicente Kresiak Canato e eu não sei exatamente onde quero chegar com isso aqui. Talvez do outro lado da rua. Talvez do outro lado da cidade. Quem sabe, do outro lado de uma autoestrada qualquer. Bem provável que na porta da sua casa. Aquela casa grande, de muros baixos e pintados de terracota. Com aquele cachorro imenso e estabanado esperando no portão. Na terra do sol fustigante, quarenta graus de amor e ódio. Talvez não. Com certeza não. A casa da qual me refiro agora é outra. E pode ser uma, dentre tantas. Em bairros nobres ou não. Longe ou perto da minha atual localização. Tudo em aberto nesse meu coração.

Meu lugar é impreciso. Dichavo um tanto de tabaco, enrolo na palha e amarro com um micro pedaço de linha preta. A arte de fazer o próprio cigarro me aproxima de maneira muito eficiente e peculiar das condições mais rústicas do ser humano. Agora sou eu, meu palheiro e os faróis verdes, amarelos e vermelhos da sinaleira da esquina, que dita o ritmo daqueles que não se arriscam à sorte das pequenas e incontáveis gotas que escorregam lá de cima. Sinto algumas delas molharem meu cabelo e meu rosto. Não desanimo, não há sequer um bom motivo para desanimar. A cidade é grande, mas é só uma cidade. Um punhado de gente, de carros, de prédios e de avisos para não fumar em locais fechados.

Cada centavo conta. Procuro pelas moedas e notas amassadas que sobraram no fundo dos bolsos, mas agora é tarde. Já desci do trem, já passei pela catraca, não há como voltar atrás. Tarde, tarde demais. Eu bem sabia que deveria ter verificado cada centavo antes de atravessar essa linha inteira. Antes de descer do trem. Antes de passar a catraca. Me faltam noventa centavos para completar o bilhete. Noventa centavos milionários, para retornar à boa e velha casa de onde há pouco saí. Melhor não esquentar. Não sei se cheguei onde queria chegar, nem se saberei quando e como voltar. Tudo bem. Meu aparelho de som portátil indica uma trilha nova e interessante de um disco qualquer do Band Of Horses, um grupo simpático de Seattle. Vou na deles. "The town is gonna talk, but these people do not".

Meu nome é Vicente Kresiak Canato, e tenho muito pouco para contar. Tanta gente ao meu redor, tantos outros possíveis Vicentes dividindo o mesmo metro quadrado. Tenho vontade de perguntar o que se passa na vida de cada um deles. Quais serão seus dilemas? Seus sonhos? Seus monstros? Quais serão suas alegrias? Seus bons motivos para sentir orgulho ou pena de si mesmos? Sinto um aperto no peito por não fazer o que tenho vontade. Às vezes me privo de dar uma rasteira nessas impossibilidades conceituais que me afastam de fazer o que realmente quero. Por quê? Não sei. Ontem ouvi, da mesma boca que me beijava, algo sobre tendências autoboicotáveis.

Como se o grande prazer da minha vida fosse dar rasteira em mim mesmo. Daí eu penso: domingo de chuva, sem um puto no bolso, do outro lado da linha do metrô que me levaria de volta para casa. Sabe a qual conclusão eu chego? Então...

O grande erro é acreditar que somos plenamente capazes de controlar nossas ambiguidades, restringindo assim nossas possibilidade de erros ou acertos. Viver é caminhar claro e escuro, cair, levantar e seguir adiante, independente da largura de cada passo que é dado. E por uma questão de saúde, é melhor eu apressar os meus. A caminhada será longa.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Ainda Sou O Mesmo

A pergunta que eu faço todo dia para mim mesmo é a seguinte: "quem foi que disse que eu tenho que ter certeza de tudo, do rumo ao prumo, quem foi que disse que eu preciso ter certeza alguma?". Quando eu era bem moleque, e quando digo bem, e quando digo moleque, isso lá pelos dez anos de idade, a única coisa que fazia sentido na minha vida era o fato de que eu realmente não sabia o que significava a palavra "sentido" e muito menos do que se tratava a palavra "fato". Eu era apenas uma criança de dez anos e tudo o que queria era ver o tempo passar enquanto esperava minha mãe me buscar na escola e o tempo parar enquanto brincava com meus amigos.

Não pensava em nada que não fosse algo do tipo. Não havia complexidade, não havia ainda a ideia de que alguém poderia vir a me fitar como um pedaço de carne pronto para o abate, como um ser à deriva, ou como uma pessoa qualquer que faz parte desse mundo tão pitoresco. Éramos apenas crianças e se pudéssemos somar nossas idades, não passaríamos dos quarenta. Caso contrário, saberíamos desde muito cedo todas essas coisas sobre a dureza de ser gente grande.

Mas não, o negócio era chutar possas, sujar as roupas e andar pelas ruas como se não houvesse amanhã. E sinceramente, certamente não havia. O amanhã, clichê de cada novo dia, é coisa pra se pensar a partir da adolescência. E como qualquer punhado de seres ínfimos, guardávamos nossas possíveis preocupações e angústias em pequenas caixinhas de segredos, bem lá no fundo daquela enorme gaveta onde circulam nossos pensamentos. Não havia certeza alguma. Não havia necessidade de certeza alguma. Havia bolo. E se houvesse bolo, havia tudo.

Posso parecer um tanto ingênuo. Um tanto bobo. E isso me incomoda muito menos do que outras certas coisas que eu poderia pensar de mim mesmo. Ou que penso. Às vezes sinto que o tempo se estende por ciclos diversos e que a cada ciclo, uma nova pessoa, dentre as tantas que sou, toma as rédeas e dita o ritmo, até que da noite para o dia, tudo muda e nada do que foi será - parafraseando Lulu - de novo, do jeito que já foi um dia. Não há qualquer sinal de bipolaridade, tripolaridade ou tetrapolaridade. Chamam isso de múltiplas personalidades. Vejo mais como um dia após o outro. Como o jeito natural de ser e se adaptar a tudo e a todos.

Não dá para passar a vida inteira fazendo tudo da mesmíssima forma, diariamente, eternamente. Há dias que a rotina escapa das mãos e prevalece aquela sensação de que o mundo é mesmo muito grande. Dias em que a rotina não escapa e então, nada acontece. Posso parecer um pouco perdido quando falo sobre certas coisas, mas é bom que seja assim, me sinto bem dizendo aquilo que me vêm à mente. Aquela ideia que supera todas as outras. Aquele lapso vencedor, que passou por cima de todos os outros e pronto. Aquela fagulha que brilhou mais intensa. Posso parecer certo de tudo. E não saber nada de porcaria nenhuma.

Certo somente de que tudo e nada separam-se por uma linha muito tênue. Ainda sou o mesmo. Por mais que o corte de cabelo seja outro, por mais que o tom da pele e da voz também tenham mudado. Por mais que as ideias tenham flutuado por diversos e distantes mares, por mais que o brilho dos olhos tenha deixado rastros por inúmeros flertes. Por mais que o corpo apresente marcas que evidenciam feridas que talvez jamais venham a cicatrizar. O mesmo ser aventureiro e questionador incansável de tudo sobre qualquer coisa que seja. Cansado da vida e distante demais da morte. Ainda sou o mesmo. Caçando sorrisos nas ruas, brincando com a sorte. O mesmo, exatamente o mesmo. Não há dúvidas, cheiro de criança, aroma de menino, perfume infalível de homem. E como o tempo voa...